domingo, 21 de dezembro de 2014

Filho de Ninguém

Nota aos leitores: Esse texto iniciou nossa parceria de prosa em 2014. Os três primeiros capítulos já existiam quando conheci André Bolívar, escritor gaúcho, que me propôs o desafio de continuar a partir do quarto capítulo, com algumas intervenções dele mas sem alterar ou influir no rumo que dei a seus personagens.


Filho de Ninguém I

" Eu nasci em uma casa caindo aos pedaços, jogaram-me dentro de uma bacia e ali deixaram, 
esperando que eu morresse. Meu pai tinha falecido algumas semanas antes e minha mãe não 
sobreviveu para poder me insultar. Nasci nessa cidadezinha chamada Imaginati, fronteira 
entre o Brasil e o Suriname. Estive nas fileiras para pegar a minha parte das pilhagens, 
meus ideais e minha fidelidade são tão duradouros quanto a palavra de uma cigana que 
conheci em Manaus ou em Serra Pelada, eu estava com febre amarela e não lembro onde 
larguei aquela vadia.Voltei algumas vezes para minha cidade natal, tive que acertar 
as contas com alguns parentes da minha falecida mãe. Eu ganhei a vida como coveiro, 
investigador, pai-de-santo, limpador de fossas, aplicador de inseticida , segurança 
de cabaré, azulejista, trocador de ônibus. Alguns conhecidos me chamam de Cabo. Acho que 
azulejista eu não fui; na verdade eu também desenhava, quando pequeno.Havia uma praça, 
eu colocava o caderno de caligrafia em cima das minhas coxas esquálidas, lambia a ponta 
do meu toco de lápis e desenhava as pessoas, cobrava pouco, um pastel, um sanduíche, 
qualquer coisa para matar a fome.Não lembro de ter desenhado algo que tenha agradado 
alguém, afinal lá só tinha gente ignorante, mais eu. Mas eu ficava ali, mesmo sem ganhar nada, 
abrindo os buracos, cova atrás de cova, morriam tantas pessoas naquela época que meus braços 
ficaram musculosos de tanto cavar.Pior era o cheiro de cadáver que morava nas narinas, não 
adiantava lavar, cheirar perfume, álcool, estrume de cavalo, cheirar o mijo das garotas, 
não adiantava, acho que era pelo tempo que eles tinham que ficar no mato, 
esperando não ter 
ninguém por perto para que eu pudesse enterrar. Uma namorada tentou me foder, falou algo de 
mim ou, pior, deixou de falar. Bem, eu a levei até a minha casa, joguei ela no sofá e perguntei, 
você conhece Robert de Niro? Nem deixei ela falar nada, liguei o aparelho e fiz ela assistir 
duas vezes O Cabo do Medo.Eu dizia eeei, olha lá, o cara mentiu e fodeu com ele. Agora olha 
o que o De Niro vai fazer com a vida dele. Tá prestando atenção? Ela chorou muito mas aprendeu 
a lição. Deve ter aprendido, nessa época eu dava aulas de tiro numa academia e um final de 
semana eu vi nove vezes o filme. Na segunda-feira eu quase dormi em pé, colando aqueles 
malditos azulejos e tudo por uma razão simples, tão simples que chega me ferver o sangue 
quando penso nisso, se alguns daqueles porcos tivessem olhado aqueles desenhos e dado o 
valor justo, merecido, se a minha mãe não tivesse me largado na vida como um cão sarnento 
quando eu nem desmamara ainda, eu não teria levado tanta porrada e tinha acabado com aquelas 
gracinhas no ginásio desde o início.Mas não quero fugir do assunto, vou de novo desde o começo, 
para que depois não digam que omiti algo. Meus pais moravam muito afastados de qualquer vizinho 
e quando a minha mãe, zelosa, deus a tenha, quando ela sentiu que estava chegando a hora de eu
vir ao mundo, amarraram a corda no pescoço do cavalo , ataram numa espécie de banco com rodas 
de madeira e partiram debaixo de um temporal, para a casa de uma parteira amiga. Mas a tempestade 
estragou tudo, pararam no meio do caminho, ali buscaram alguém. Disseram-me que eu nasci em um 
terreiro e que o desalmado e cafajeste do meu pai me largou como um cavalo manco e cego quando 
soube que eu não era filho dele, aliás bastaria olhar a cor. 
Mas aquele velho pulguento era ignorante, igualzinha a toda gente daquela cidade, mais eu. " 
André Bolívar


Filho de Ninguém II

" Meu pai e minha mãe não me viram engatinhar, nem pedir esmola, não viram eu treinar 
boxe para ajeitar um braço atrofiado, eles não me viram roubar pão nem vender amuletos, 
eles nem sabem que eu dirigia horas chapado levando cana de um lado para outro em Aliança, 
Condado,Timbaúba, Macaparana ou que contrabandeava carne, lã e couro de Rivera para 
Santana do Livramento, Dom Pedrito, Rosário do Sul.O homem que mentiu ter me criado 
chamava-se Agenor e que o diabo o tenha agora trancafiado em um banheiro fedido, com 
imundície por todos os lados, como ele fazia comigo até eu ter idade para soltar a pia 
de louça que deus deve ter colocado ali , e eu ter resolvido o problema.Eu tinha uns 
onze anos quando fiquei solto no mundo, novamente. Nessa época uma velha se interessou 
por mim, tratava-me como um filho, com ela eu perdi a virgindade e alguns pedaços de 
pão que o marido dela jogava para mim, da escada do trailer caindo aos pedaços em que 
viviam, mal lia-se Jocker (assim mesmo, se não me falha a memória) em letras apagadas. 
Ele era um palhaço bêbado, sem graça e que vivia insultando as pessoas, achava que as 
migalhas que jogava para mim me comprariam. Além de analfabeto de pai e mãe, dizia com 
orgulho que a única coisa que lia era rótulo de cachaça.Ela era uma acabada assistente 
de palco, tremia tanto que não deixavam mais ela lidar com os malabares, ali estiveram 
até que ninguém mais foi ao circo, as pessoas não tinham nem água decente para beber, 
iriam pagar ingresso para ver um elefante anão mais magro que eu? Sei que se foram, a 
comer poeira, como eu. Revi o velho Joker uns dez anos depois, vendendo remédio contra 
mordida de cobra, afta e gonorreia, morava com um travesti e parecia ter rejuvenescido. 
Dela, eu nunca mais soube nada. Eu já contei, mas se não lembram, não me custa nada reavivar 
a memória de vocês, porque em mim a preguiça não se cria e nunca se criou- desde o dia que 
eu nasci. Eu nasci em uma casa que tinha as tábuas da parede tão quebradas e o telhado tão 
miserável, que foi um milagre eu ter sobrevivido no meio daquele aguaceiro, contaram-me 
que chutaram a bacia onde haviam me jogado e que me acharam três ou quatro minutos depois,
debaixo d'água. Certamente pensaram que eu tinha me afogado e que haviam se livrado de mim,
isso vocês devem lembrar, que a desgraça alheia gruda como piche na memória. Bem, eu sobrevivi 
a facadas, incêndio, mau-olhado, burrice, má vontade, mas uma coisa eu não aceito e me deixa 
marcas aqui. Quem mente para mim verá meus olhos na hora de morrer, nem que seja em pesadelo. 
Sobre a vez que amei. Eu a conheci em uma igreja, estava lá, linda, fingindo rezar. Magra como 
a sua virtude. Eu entrei na igreja para oferecer meu trabalho de pintor, queria uns trocados 
para desenhar alguns santos e anjos ali dentro e eu a amei como um tolo, ainda agora gira algo 
aqui enquanto escrevo, eu viajava muito, passava bastante tempo fora vendendo livros didáticos 
que compravam mas não liam, certamente. Voltando ao assunto, nem que a santa Bíblia mandasse, 
que jesus descesse aqui e gritasse eeeei ela é a única mulher que restou no mundo, você deve 
procriar! Nem que o mundo fosse acabar eu tocaria novamente naquela cadela e muito menos 
ajudaria a colocar no mundo sua prole com seus genes levianos, que neste mundo já tem gente ruim 
que baste. Eu a vi mês passado, olhava por uma janela, através das grades descascadas da janela. 
Até ia me aproximar para olhar bem dentro dos olhos dela, mas estava um cheiro insuportável de 
gasolina na garagem e um som alto e pesado demais eu nunca gostei de som pesado, eu costumo 
agredir as caixas de som que agridem os meus tímpanos. Mas ela me viu, baixou seus olhos 
grandes e falsos e eu queimando por dentro consegui fingir um sorriso que deve ter se parecido 
mais com um esgar. Outro dia, pensei. E fui-me embora, estava atrasado para varrer a faculdade 
ou fazer a contabilidade de um boteco, não lembro bem. E como se Leviatã caminhasse sobre mim, 
ele que tem a extensão de todo um céu, aprendi isso quando fui ajudante de um padre que roubava 
as oferendas e não dividia comigo, como se todas aquelas toneladas me pesassem, eu lembro que 
meu estômago doía e ainda agora dói."

André Bolívar


Filho de Ninguém III

" Quero, antes de tudo, dizer o que penso deste mundo de merda rodeado 
de gente mentirosa, aduladora e podre.
No meio dessa laia sempre tem uma ou outra que preste, acreditem. Mas 
é como procurar agulha em um palheiro, entendem?
Eu caí aqui, fui jogado aqui, não resta a menor dúvida. 
Como não quero passar por santo e nem por mentiroso - que santo não 
existe e o que diferencia o homem do bicho é a palavra, coisa que tenho 
de sobra - devo deixar claro que a aversão que tenho ao cheiro de gasolina 
deve-se a uma noite que a mando do meu patrão, toquei fogo no escritório 
dele, em busca do valor pago pelo seguro.
Eu tinha 25 anos e era a única maneira dele, falido, pagar meus salários 
atrasados.Mas não havia seguro, enganou-me. Achou que se me matasse enquanto 
eu tentava invadir o estabelecimento dele, quitaria sua dívida trabalhista 
comigo. Mas eu cheguei antes do combinado e quando ele deu o primeiro tiro, 
eu já estava sem fôlego de tanta fumaça que respirara. Mas já havia iniciado 
o fogaréu de maneira que nem os bombeiros daquela cidade - se existissem 
bombeiros lá - conseguiriam apagá-lo. Saí de lá levando balaços pelas costas, 
atirei-me em um rio,sorte minha que era noite e não me acharam.
Foi também na calada da noite que eu voltei a Santa Maria de Jetibá, quatro 
meses depois para tentar uma conversa amistosa com meu ex-patrão.Que deus o 
tenha. Não, sem hipocrisia. Não foi deus que ele foi visitar.
No que acredito? Eu tenho me feito essa pergunta muitas vezes há muito tempo.
Eu não sei. Nas pessoas, certamente que não. Céu e Inferno? Não, hoje não mais.
Pensei nisso, também, quando vi Berenice junto a janela metida naquele fedor de 
gasolina que vinha da sua garagem. Não consegui distinguir que som vinha da garagem, 
o maldito som da música pesada me enervava e abafava o barulho que tanto podia ser 
de uma serra elétrica quanto de uma motocicleta. 
Você tem uma bola de cristal, amor- dizia.
O meu amor é incondicional, vida minha- Maria Berenice dizia.
Ela dizia muitas coisas por dizer e sem pensar que logo ali, adiante, eu repararia nisso.
Ah, deus, como eu te amo- dizia eu.
Pena que eu não tenha um dicionário aqui para usar a palavra correta sobre isso tudo.
Eu sou uma pessoa bem sensível, se conseguirem julgar como cheguei até aqui.
Eu carregava um minidicionário comigo, mas o perdi há três anos, quando montava em 
um cavalo que o dono chamava de pangaré para chegar ao topo de um outeiro. Levava 
na minha garupa um menino que queria ver onde o pai trabalhava, ele trabalhava quando 
não estava jogando na internet, lá no topo do morro, de carro daria uns 10 minutos mas 
meu carro estava na oficina. Eram quatro horas da tarde quando fui fazer essa gentileza, 
havia bebido, estava com o coração apertado, talvez tenha visto naquele menino um pouco 
do que gostaria de ter tido quando criança, ao menos um pai para visitar de surpresa na 
saída do trabalho.
Era meu vizinho e tinha 7 anos, inteligente, educado, parecia sempre triste, eu juraria 
que afastado. 
Quando eu o desci do cavalo, suávamos como se estivéssemos pulando no sol e lá ele viu o 
pai, que entre três ou quatro outros homens, conversava.
Ele correu de braços abertos , eu desci do cavalo e decidi, ele dá um abraço e voltamos , 
estou com sede. Tenho 40 anos de idade e a cicatriz no meu peito está doendo , mal sinal.
Mas não teve abraço, o pai dele apenas acenou e mandou ele voltar.
Falou algo para mim, de longe.
Eu sorri, peguei o menino, alisei os seus cabelos e disse eeeeeei, seu pai está brincando 
com você, está muito ocupado. Ele deve ser um auxiliar muuito ocupado. Que tal um refrigerante?
O menino ficou murcho, nem fingir um sorriso, fingiu.
Descemos, a trote, murchos.
O pai dele falou algo para mim, lá em cima, eu não ouvi direito.
Mas eu ouviria, quando aquele filho da puta descesse do seu importante trabalho.
Eu estava fazendo hora e planejando o que eu diria, como diria e o que ele poderia dizer, 
em que posição ele estaria e cuidando as minhas costas, no balcão, quando Conceição chegou, 
como uma cobra, rebolando, um sorriso de malícia no rosto:
- Quente...
- Muito. 
- Agradecida por levar meu menino pra ver o trabalho do pai.
- Não foi nada. Seu marido já chegou?
- Ainda não, eita que calor...
Ficou de costas para mim, rebolando mansamente, lembrei de uma velha casada com um palhaço 
de circo que conheci, ela também gostava de abusar do batom. Olhei fixamente a bunda de Conceição. 
Ela levantou os cabelos deixando a nuca a mostra.Quando vi que ela reparou na direção do meu olhar 
e deu uma requebrada, acendi um cigarro e deixei-a ali, como se eu não a enxergasse mais. Bonito 
eu nunca fui, mas também não sou de se jogar fora, analiso isso pela quantidade de mulher que já 
deitou comigo. Então levantei e fui até a porta do bar, dali eu enxergava a rua principal, 
de onde ele viria.
Ele chegou a tempo de ver a mulher dele, ali, suando, perto de mim.
Ela se adiantou: Fui comprar pão e resolvi tomar um refrigerante, amor, mas vou correndo pra 
casa que o Binho está sozinho, vai logo tá amor? Bye seu Cabo, até mais.
Como eu sei bem onde apertar o sapato dos outros, ainda mais quando com raiva e eu estava com 
raiva, fiquei olhando ela rebolar até sumir na esquina.
Ele parado, me encarando, sem dizer nada.
Olhei para ele, perto de mim ele é baixo, olhei para baixo, acendi outro cigarro:
- Não ouvi bem o que você me disse lá em cima, quer tomar uma cerveja?
- Não, eu tenho que ir embora, ela já deve ter aprontado a comida e se em vez de aprontar 
ficou passeando por botecos...
- Eu não ouvi o que você disse lá em cima, no meio dos seus amigos, quando Binho estava 
para lhe dar um abraço.
- Eu disse para ele voltar, que eu veria ele em casa, não disse mais nada.
- Então tá certo.
Ele ia dando as costas, quando peguei o braço dele, de leve.
- Você não gostou de eu ter levado ele até lá? Seja sincero, assim como eu sou. Gosto disso.
- Não, tudo bem. Que é isso? Tudo bem, agora vou indo, Cabo. Boa cerveja.
Voltei para o balcão com o sangue fervendo, aquele merda não falou a verdade. Ele afrouxou mas garanto 
que em casa daria uma de galo.
Isso que penso do mundo: 
Está cheio de mentiroso covarde.Cheio de gente que abaixa as calças pra quem tem dinheiro ou 
status social (naquela cidade saber diferenciar a palavra mais da palavra mas já dava esse status) 
e cheio de gente que fala o que pensa sussurrando, na hora do vamos ver, emudecem.
Se a gente cavar um buraco e sair procurando alguém que fale a verdade, a gente cava até o Japão e é 
bem capaz de achar três ou quatro, somente. Isso se a pá não cortar algum ao meio.
Eu penso muito nisso e se não sei a razão com cem por cento de certeza, devo estar bem próximo disso.
As pessoas são assim, porque cresceram mentindo e se livram de umas poucas e boas,
mentindo. Mas ali 
adiante a gente enxerga o rabo nojento da mentira.
Eu estava quase confiando na Maria Berenice.
Eu disse a ela quando a conheci, olhe, eu não confio em ninguém.
Você pode confiar em mim, cegamente, ela disse.
Se eu não tivesse descoberto o quanto ela mentia, eu poderia ter casado com ela,
quem sabe assim estivesse até hoje. Não teria saído da cidade onde ela mora naquela casa que tem 
uma garagem fedida a gasolina e tem, além do mais, aquele som maldito. 
Mas eu precisei sair da cidade, mudei para alguns poucos quilômetros de distância, a vejo quando 
quero e quando meu estômago permite.
Eu tenho tanta vivência que reconheço pedra quando toco em uma, de olhos fechados. Mesmo ela estando 
embrulhada em pacote de presente.
Então muitas vezes, ela me vê fumando um cigarro e o coraçãozinho duro dela deve bater descompassado, 
quer me falar, me dizer algo, me explicar, os olhos dela quase me puxam, o sangue dela quase me puxa, 
muitas vezes ela tenta se aproximar.
Mas eu ainda estou aqui, pensando no que farei. Preciso repetir?
Quando for a hora eu olharei bem nos olhos dela, no fundo do fundo dos olhos dela e não precisarei de 
mais do que dez palavras para dizer o que penso dela e o que ela fez comigo.
Bem, eu caminhei até a porta da casa de Conceição e bati.
Ela mesma abriu, seu rosto estava sem marcas.
Binho estava vendo televisão, de costas. O pai tinha um capacete na mão. Aproximou-se, avermelhando, 
devagar, balbuciando.
- Sei que não é hora, mas Binhoo, por acaso não ficou um dicionário na sua mochila? Quando subimos no 
cavalo para visitar seu pai, eu não coloquei ele na sua mochila?
Foi bem assim, um pé e a cabeça dentro e o resto do corpo para fora da porta. Binho virou-se devagar 
- Não, seu Cabo, acabei de tirar as coisas de dentro, tá não.
Seu rosto estava lindo, nem chorado havia.Estava apenas triste, como sempre.
Desculpei-me, apalpando as minhas costas - sei ser educado até com um merda daqueles, às vezes - 
e ganhei a rua. Não  sou homem de deixar os ii sem pingos.Eu nunca fui mais macho do que ninguém, mas 
mais homem que muitos merdas que andam por aí, eu sou. E não peco por omissão.
Lá ia eu, com uma dor na cicatriz do peito, uma Glock preta .380 nas costas e uma saudade miserável 
de quando eu andava tranquilo de mãos dadas pelas ruas.
Essa cambada murmura que eu faço de tudo para morrer. Eu não me importo. "


André Bolívar


Filho de ninguém IV
Sei como morrerei: um tiro pelas costas, os dentes sendo arrancados pelo balaço como teclas de piano. Mas isso não é acontecido senão eu não estaria escrevendo agora. 
Até o quarto primário já da pra aprender tudo de ler e contar, eu não sou burro, eu ia pra comer a merenda e nem merda de sapato eu tinha quando desmaiei no meio do pátio, o mundo virando e aquela mão branca me acudindo, muito lisa e macia de quem nunca pegou no pesado, era a primeira vez que me tocava uma mão assim e só depois de macho quando deitava com aquelas vagabundas ricas me pagando para lamber meu suor em minhas partes parecia uma seda de vestido e eu ficava excitado porque gosto de coisa boa e seda é coisa boa.
Mas estou lembrando disso lá de trás porque quando saí do desmaio a primeira coisa que vi foram aqueles olhos castanhos amendoados da professora que depois disse que eu era inteligente, que tinha que ter força pra estudar, que eu até teria um futuro bom se estudasse. Mas não sabia nada da merda de vida que eu levava e  dali uns dias tava largado no mundo outra vez até a velha me dar um prato de comida e eu dormir numa esteira debaixo daquele maldito trailer do bêbado palhaço; mas não era isso que eu queria lembrar porém a gente não manda na lembrança nem quando tá morrendo, era os olhos da professora de um castanho parecendo uns pingos de mel que só vi outra vez igual nos olhos da Berenice. 

Aqui eles pensam que não escuto, aquela vaca que repetia te amo, Cabo, meu amor é incondicional, você pode confiar em mim. Nunca confiei em ninguém mas um dia que ela desceu da sacada e veio pedir um cigarro, quando voltava lá dos confins eu tinha uma mania de voltar lá e não sabia porque e então quando eu acendi o cigarro dela vi os os olhos da professora que me acudiu e descobri porque eu sempre voltava e eu transava com ela pensando na professora e depois sumia no mundo que é meu lugar. 
Mas Berenice queria me amarrar naquele cheiro de gasolina e naquela falsidade dela e já ouvi uns conselhos pra eu sossegar e formar família , eu gosto de família e queria ter um filho como o Binho que ele não ia ser triste assim porque tem um pai filho da puta que nem isso tive, mas eu ia levar ele pra ver o mar que de tudo que vi nada é mais bonito, nem os peitos de Berenice nem a bunda da Conceição,  porque mulher é bicho bonito de olhar e pegar mas mar é mais. 
Sou um homem duro mas meu coração derrete com covardia e endurece meu corpo,  que nem quando vi o cara arrastando a mulher com bebê no colo, arrastou pelos cabelos do fundo daquele ônibus mas só até onde estava o meu assento,  porque levantei e dei  um soco na garganta daquele jegue de dois metros que ele nunca mais respirou direito, tenho certeza disso. Covardia não deixo passar mesmo que me atrase a vida que nem o ônibus atrasou a vida de todo mundo porque veio polícia e dessa vez eles ficaram do meu lado e saí livre e o saco de banhas atrás das grades pra aprender a ser homem, que isso eu sou, mesmo sendo tratado feito animal desde a barriga daquela cadela da minha mãe. 
Mas também fui animal. Eu sei quando tenho que copular como uma cavalo e acariciar como uma madre. 
Na minha cabeça to escrevendo tudo pra não esquecer quando sair daqui e vou até o fim do mundo pegar essa vagabunda, pode confiar amor, com aquela vozinha de adolescente, mulher feita querendo me pegar se faz de bobinha porque sabe que estou gostando dela e gostar não tem como escolher, pode gostar daquela que vai nos matar mas a gente cega e ensurdece. 
Eu voltava das minhas andanças e fazia um pouso em Berenice e ela, come meu bem, esse arrozinho, esse feijãozinho, esse bifinho feito com tanto amor, mulher que fala tudo no diminutivo alguma coisa quer me arrancar, dinheiro eu não tenho, então hora de abrir o olho porque ela é mais esperta do que aparenta. E Berenice é dessas mas pensa que não sei, aliás não sabia mesmo porque homem é mais burro que mulher pra entender essas jogadinhas pequenas, baratas. Homem  entra em briga grande, mata ou morre, mas tudo cara a cara, não fica remoendo uma vingança muito tempo, mas essa fez tudo de caso pensado. 
Quem descobriu só podia ser mulher, pois pra desconfiar disso só também sendo capaz de fazer uma merda dessas. 
E eles ficam falando bobagens e flertando durante a cirurgia, achando que anestesiado não ouve nada - mas é difícil me anestesiar, nem quando abriram meu peito após o ataque cardíaco; não apago fácil, quem vive pelo mundo como eu nunca apaga porque sempre tem um filho da puta traíra que vai te roubar, porque a humanidade não presta, foi um câncer que deu na natureza, uma anomalia, anomalia é uma palavra bonita que gravei quando vi a primeira vez no dicionário que andava agarrado comigo, já falei do dicionário aqui nesses escritos que estou gravando na minha mente para não esquecer nenhuma palavra quando pegar meu caderno outra vez. 
Eu ouvi a doutora dizendo pro outro: essa hemorragia não foi da briga não, parece que é vidro moído - e ela riu. 
A vaca riu e continuou, muita mulher faz isso, vai matando o homem aos poucos. 
O doutor não riu, acho até que gelou, vamos avisar à policia então. 
Mas eu queria falar e não conseguia para que não avisassem a  policia não, porque a piranha ia fugir se soubesse da suspeita, mas me doparam tanto que nenhuma palavra saía. 
Sei de poucas coisas, mas sei com a força da sabedoria de um raio que arrebenta um morro inteiro pelo meio, 
que não vou morrer dessa vez, porque quero dizer as dez palavras que prometi a ela, antes de acertar as contas. 
Eu tive a intuição que ela ia me sacanear desde o dia que a vi na igreja, magra como a sua virtude. Mas isso meu deus não é sacanear, isso é matar o homem que ela amava, come amorzinho, fiz com tanto carinho, amor. 
Quando te amei, Berenice, eu te trouxe à vida e te matei. Eu sou deus porque eu não me dei vida, eu soprei minhas narinas. 
Mandaram eu estrangular meus sonhos e e eu estou ainda aqui, com um sonho enorme fervendo dentro de mim. 
Eu vou pegar você assim pelo pescoço como se pega um gato pra esganar e chegar minha boca pertinho do teu ouvido e falar bem baixinho assim: 
- Eu não vou te matar, mas você vai sofrer, vaca."

Ana Terra / André Bolívar


Filho de Ninguém V

" Quando morri afundei meu peso na calçada, lentamente.
Eu era um cão sarnento igual a todos vocês,
que pensam cuspir diferente.
Mas demorou muito ficar velho acabado e terminar naquela calçada 
sem  esmolar que não sou nem fui homem de implorar nada a ninguém.
Fiquei ali um tempo, perdendo a cada dia um pedaço.
Eu lembro de cada dedo que foi amputado,
é diabetes que esse bêbado desgraçado tem,
eu sempre ouvia mesmo anestesiado o que esses filhos da puta diziam
na sala de cirurgia, porque o mundo é cheio de filho da puta
se fazendo de bonzinho que nem essas vacas perfumadas
que se cansam de não ter o que fazer e vão fazer caridade
e me levavam pra dar banho e pra hospital, 
pergunta se levavam pra casa delas,
mas quando era moço elas gostavam do meu jeito de macho e me pagavam.
Isso não esqueço nem depois de morto 
porque a vida não é só  desgraceira, prestem atenção,
e lembro com a força de um furacão as vezes que vi deus e o diabo juntos
no corpo de cada mulher que comi 
e agora vejo tudo porque morrer não é acabar como pensava, é ver que nem um filme 
sem fim, tudo e o escondido de cada um e o avesso de cada um como se tivesse
encarnado e vivido a vida deles porque onde estou não tem nem espaço nem tempo
já tinha lido isso num livro mas não tinha entendimento para aquela explicação e agora 
daria minha cara à tapa, se cara tivesse, que do lado de cá só não vi céu nem inferno
mas o mundo que vivi ta todinho aqui,e o sentimento que não via todo, 
mas sempre tive sentimento e encheria de porrada 
o pai do Binho, que era menino bom, eu também entendia de bondade
e daqui tô vendo ele crescer cheio de revolta pelo desprezo do pai
até fugir de casa cansado de ver a puta da mãe dele levar porrada do pai, eu também 
ja entrei no corpo dela pra saber que fêmea pode ter fogo que nem macho 
e o marido não dar conta e agora como magia, que mágica não existe, eu já disse isso antes,
entro no pensamento dela, nos desvãos das memórias dela
- esse Cabo é macho mesmo, não se caga de medo feito os outros,
não tira os olhos da minha bunda nem na frente do meu marido de merda
eu provoco mesmo mas ele não vai mais se deitar comigo por causa
desse apego ao Binho e proteger ele em tudo como se fosse pai mesmo 
e não posso abrir minha boca é nunca pra não ter banho de sangue
mas Binho ia ter outra vida se soubesse quem é seu verdadeiro pai,
não é esse traste broxa que não dá conta de mim, não sabe tratar uma mulher na cama
mas Cabo sabe quando é pra acarinhar e quando é pra tratar como cadela
não esqueço nunca que ele foi o único homem que me deu flores nessa vida
chegou assim bonito como Jesus Cristo no meio das rameiras e sorriu 
me entregando o ramo como se eu fosse assim uma princesa e não uma vadia no fim do mundo
e eu fiz pra ele a melhor coisa que sei fazer, dar prazer pros homens
e quando ele saiu de dentro de mim, naquele momento justinho
eu soube que peguei barriga e foi assim como se eu fosse a virgem maria
que recebia a notícia do anjo e enquanto ele dormia eu olhei pra ele e vi
que nunca mais deitaria comigo, foi como um aviso vindo de não sei onde.
Quando saí do pensamento dela só não doeu meu corpo todo porque não tenho
mais, nem coração tenho pra disparar, sou feito só de pensamento sem corpo
mas como os amputados, eu li numa revista que me caiu nas mãos quando menino
e custei acreditar que ainda sentem a perna que já foi arrancada faz tempo e eu agora
sei que é verdade porque sinto o corpo que perdi, sinto o corpo dela no meu 
como se fosse agorinha que estivesse nas minhas mãos e sinto um aperto no peito
como se cravassem um punhal nele, que o menino é meu filho e não pude cuidar,
me joguei na estrada pra me livrar dessa mulher que não podia ter uma segunda
vez porque ia ser minha danação, que em toda a minha vida inteirinha nunca me
deitei com uma assim,  que me deu tanta satisfação que até peguei febre,
eu fugi pra saber agora como o pensamento dela era bonito quando eu achava que mulher
que se entrega assim não tem pensamento bonito mas sei que às vezes uma voz
me dava ordens e eu obedecia porque podia ser deus, mesmo não acreditando eu temia
e naquele dia a voz mandou eu comprar as flores que um moleque vendia no caminho
e agora sinto rolar as lágrimas que não tenho mais porque naquele dia que levei Binho
pra ver o desgraçado do pai que não é pai nem do próprio cu
e voltei na casa pra ver se o menino 
tinha levado surra e vi ela se rebolar e não consegui nem disfarçar porque deu vontade
de me deitar com ela, mas se ela falasse que eu era o pai dele eu tirava os dois ali na marra 
e sei que corno não seria é nunca.
Mas eu morri sem ter humano algum por perto,um cachorro sarnento lambeu
minhas últimas feridas e nem Judas nem anjos deixaram o asco de lado 
para se aproximar do meu corpo aos pedaços.
Só ouvi um estampido, como se um lacre gigantesco fosse arrombado
e vi uma fila de gente, vultos de gente, centenas de gente que 
me olhavam com faísca nos olhos.
Alguns poucos choravam."

Ana Terra/André Bolívar

Um comentário:

  1. Parceria perfeita, textos de encher a mente, olhos e coração, dois talentos do qual sou fã incondicional.
    Walter Martins

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