sábado, 31 de janeiro de 2015

Saudades

Saudades! Sim.. talvez.. e por que não?... 
Se o sonho foi tão alto e forte 
Que pensara vê-lo até à morte 
Deslumbrar-me de luz o coração! 

Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão! 
Que tudo isso, Amor, nos não importe. 
Se ele deixou beleza que conforte 
Deve-nos ser sagrado como o pão. 

Quantas vezes, Amor, já te esqueci, 
Para mais doidamente me lembrar 
Mais decididamente me lembrar de ti! 

E quem dera que fosse sempre assim: 
Quanto menos quisesse recordar 
Mais saudade andasse presa a mim! 

Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"'





ARROZ COM FEIJÃO


Eu tava quieta no meu canto
pensando
...existe uma inteligência superior fora do homem...
aí tocou o telefone
e era ela
com aquela voz de galinha garnisé
-fulano está?
eu me controlando
-não, quer deixar recado?
-não, eu ligo outra hora
aí eu não aguentei
-galinha não tem nome mesmo!
bati o telefone
Ele chegou do trabalho
-alguém ligou, bem?
-gente?
-claro, tá doida?
-não, gente não ligou não
e fui aos meus cuidados
descasquei o alho
soquei com sal
lavei bem lavadinho o arroz
fritei bem fritinho o bife
temperei bem temperadinho o feijão
e nem lembro o que mais
ele encheu o prato
comeu sem falar nada
deve estar pensando nela
me arrependi dos temperos
amanhã boto vidro moído


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Estrela - Vladimir Maiakovski


Escutai!!! Se as estrelas se acendem será por que alguém precisa delas? 

Por que alguém as quer lá em cima? 
Será que alguém por elas clama, por essas cuspidelas de pérolas? 
Ei-lo aqui, pois, sufocado, ao meio-dia, no coração dos turbilhões de poeira; 
ei-lo, pois, que corre para o bom Deus, temendo chegar atrasado, 
e que lhe beija chorando a mão fibrosa. 
Implora! Precisa absolutamente duma estrela lá no alto! 
Jura! Que não poderia mais suportar essa tortura de um céu sem estrelas! 
Depois vai-se embora, atormentado, mas bancando o gaiato e diz a alguém que passa: "Muito bem! Assim está melhor agora, não é? Não tens mais medo, hein?" 
Escutai, pois! Se as estrelas se acendem é porque alguém precisa delas. 
É porque, em verdade, é indispensável que sobre todos os tetos, cada noite, 
uma única estrela, pelo menos, se alumie.


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

INSÔNIA 2

Ai meu Deus
Por que não tenho
Um infarte fulminante
No meio dessa madrugada que dói
De esperar ele despontar
Disfarçando cheiros e chopes
“o papo tava tão bom que perdi a hora...”
eu fingindo que cochilo e
não ligo, ou melhor:
“você podia ter avisado
que não bateu o carro,
não foi preso nem assaltado”
meio envergonhada
meio dividida
de ter passado a noite inteira
preferindo desastre e viuvez
a meu homem com outra mulher



terça-feira, 13 de janeiro de 2015

FELICIDADE

Não se trata de sempre
De nunca
Simplesmente prevista
Pra todos mortais
Às vezes de tocaia no escuro silêncio
Às vezes claramente na praia
Avisada por anônimas cartas
Ameaças
De costas
No limite da mira
Telescópica
De frente
À queima-roupa
Aqui
Nas planícies
Planaltos pirâmides
Mangues asfaltos ares
Condicionados
Desertos
Mas se você se esquiva abaixa reage delira tem tempo
Pra pensar
Você escapa
Ileso leso furado traumatizado aleijado morto
Mas se ela te atinge
Com um único estampido meio seco
No meio
Bem no meio do seu besta coração
Ai meu Deus do céu
Foi menos por competência do pistoleiro profissional
Que por tua vocação
Ao peito aberto
Olhar nas nuvens
E alvo maior que o normal

sábado, 10 de janeiro de 2015

O AMOR Vladimir Maiakóvski

O AMOR
Vladimir Maiakóvski (1893 - 1930)

Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em enumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo Universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
- Camaradas!
Atenta se volte a Terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que
doravante
a família 
seja
o pai,
pelo menos o Universo;
a mãe,
pelo menos a Terra.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Dia de Reis, dia de minha rainha Stella Maris, Stella Caymmi.

Hoje é aniversário dela mas ela não está mais aqui para receber meu beijo, meu carinho, me chamar de Aninha, me chamar de filha sendo minha sogra, me chamar de norinha por mais de trinta anos mesmo eu trocando tantas vezes de marido, passar férias na casa dela mesmo separada de seu filho. Um pouco antes de morrer ela me chamou para se despedir. Entrei de madrugada no hospital e já estava em coma. Tinha muito medo da morte, assim como eu, ou saudade da vida como Vinícius. Achava que era pecadora e não merecia o céu. Mas naquele momento, Bandeira e São Pedro piscaram para nós: - entre Stella, você não precisa pedir licença.